segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O real presente....

«Um ponto importante da sabedoria de vida consiste na proporção correcta com a qual dedicamos a nossa atenção em parte ao presente, em parte ao futuro, para que um não estrague o outro. Muitos vivem em demasia no presente: são os levianos; outros vivem em demasia no futuro: são os medrosos e os preocupados. É raro alguém manter com exactidão a justa medida. Aqueles que, por intermédio de esforços e esperanças, vivem apenas no futuro e olham sempre para a frente, indo impacientes ao encontro das coisas que hão-de vir, como se estas fossem portadoras da felicidade verdadeira, deixando entrementes de observar e desfrutar o presente, são, apesar dos seus ares petualentes, comparáveis àqueles asnos da Itália, cujos passos são apressados por um feixe de feno que, preso por um bastão, pende diante da sua cabeça. Desse modo, os asnos vêem sempre o feixe de feno bem próximo, diante de si, e esperam sempre alcançá-lo.

Tais indivíduos enganam-se a si mesmos em relação a toda a sua existência, na medida em que vivem ad interim [interinamente], até morrer. Portanto, em vez de estarmos sempre e exclusivamente ocupados com planos e cuidados para o futuro, ou de nos entregarmos à nostalgia do passado, nunca nos deveríamos esquecer de que só o presente é real e certo; o futuro, ao contrário, apresenta-se quase sempre diverso daquilo que pensávamos.
O passado também era diferente, de modo que, no todo, ambos têm menor importância do que parecem. Pois a distãncia, que diminui os objectos para o olho, engandece-os para o pensamento. Só o presente é verdadeiro e real; ele é o tempo realmente preenchido e é nele que repousa exclusivamente a nossa existência. Dessa forma, deveríamos sempre dedicar-lhe uma acolhida jovial e fruir com consciência cada hora suportável e livre de contrariedades ou dores, ou seja, não a turvar com feições carrancudas acerca de esperanças malogradas no passado ou com ansiedades pelo futuro. Pois é inteiramente insensato repelir uma boa hora presente, ou estragá-la de propósito, por conta de desgostos do passado ou ansiedades em relação ao porvir.»

SCHOPENHAUER, Arthur  in Aforismos para a Sabedoria de Vida

Nunca pense por mim, pense sempre por você!

«Meu caro amigo
Do que você precisa, acima de tudo, é de não se lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros, se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu, do que todos os acertos, se eles forem meus, não seus.
Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa  altura já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardam no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhe: a de não se conformarem. (...)
Estude ferozmente, com os dentes cerrados, empregue toda a sua força, estoire os músculos; ou você domina a filosofia ou a filosofia o domina a você: só é forte quem se apaixona; mas se você for ovelha ante os filósofos, só lhe resta um destino: o de balir. É preciso que haja no seu combate e logo nas horas de princípio um tal ímpeto de ataque, uma tal segurança de passo, que nenhuma fortaleza lhe possa resistir; empregue-se todo na sua faina, vá pelo simples à variedade, pelo especialismo ao total; ganhe primeiro uma disciplina, só depois se poderá lançar em aventuras.»

SILVA, Agostinho - in Sete Cartas a um Jovem Filósofo

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O Dom da Dislexia

«Capítulo I
O Talento Latente

Normalmente, quando ouvimos a palavra dislexia pensamos apenas em problemas que algumas crianças têm na escola com a leitura, a escrita, a ortografia e a matemática. Alguns associam-na apenas a troca de letras ou palavras, outros à lentidão de aprendizagem. Quase todos a consideram uma forma de perturbação da aprendizagem. Na verdade, isso é apenas um dos aspectos da dislexia.
Uma vez, quando fui convidado para uma entrevista na televisão, perguntaram-me pelo lado "positivo" da dislexia. Como parte da resposta, relacionei cerca de uma dúzia de disléxicos famosos.
A entrevistadora então comentou:
- Não é surpreendente que todas essas pessoas tenham sido génios, apesar de serem disléxicos?
Ela não percebeu o "x" da questão. A genialidade deles não ocorreu apesar da dislexia, mas por causa dela!
Ter dislexia não faz de cada disléxico um génio, mas é bom para a auto-estima de todos os disléxicos saberem que as suas mentes funcionam exactamente do mesmo modo que as mentes de grandes génios. Também é importante saberem que o facto de terem um problema com a leitura, escrita, ortografia ou matemática não significa que sejam burros ou idiotas. A mesma função mental que produz um génio pode também produzir esses problemas.
A função mental que causa a dislexia é um dom, no mais verdadeiro sentido da palavra: uma habilidade natural, um talento.
É uma coisa especial, que engradece o indivíduo.
(...)
Nem todos os disléxicos desenvolvem os mesmos dons, mas possuem, certamente, algumas funções mentais em comum. Aqui estão os talentos básicos que todos os disléxicos compartilham:

1. São capazes de utilizar o seu dom mental para alterar ou criar percepções (o principal talento).
2. São altamente conscientes do meio que os rodeia.
3. São mais curiosos que a média.
4. Pensam principalmente em imagens, e não em palavras.
5. São altamente intuitivos e capazes de muitos "insigths".
6. Pensam e percebem de forma multidimensional (utilizando todos os sentidos).
7. Podem vivenciar o pensamento como realidade.
8. São capazes de criar imagens muito vividas.

Estas oito características básicas, se não forem suprimidas, anuladas ou destruídas pelos pais ou pelo processo educacional, resultarão em duas características: inteligência acima do normal e uma extraordinária criatividade. A partir daí, o verdadeiro dom da dislexia pode emergir como o dom do domínio.
O dom do domínio desenvolve-se de muitas maneiras e em muitas áreas. Para Albert Einstein, foi na Física; para Walt Disney, nas Artes; para Magic Johnson, no desporto.

Uma Mudança de Paradigmas

Se quisermos mudar a nossa perspectiva em relação à dislexia - de transtorno para dom - devemos começar por uma compreensão clara e precisa do que é realmente a dislexia e qual a sua causa. Procedendo desta maneira, destacaremos tanto os aspectos  positivos como os negativos da situação, e conseguiremos ver como a dislexia se desenvolve. Então, a ideia de a corrigir não parecerá absurda. Além disso, indo um passo além da correcção do problema, também poderemos reconhecer e explorar essa condição como o dom que realmente é.
Antes que um disléxico possa perceber e apreciar plenamente o lado positivo da dislexia, devemos considerar seu lado negativo. Isto não quer dizer que o lado positivo não possa vir à tona enquanto os problemas ainda existirem. O dom está sempre presente, mesmo que não seja reconhecido. De facto, muitos disléxicos adultos usam o lado positivo da dislexia nas suas carreiras sem se darem conta. Acreditam, apenas que têm um jeito para fazer determinadas coisas, sem perceberem que o seu talento especial vem das mesmas funções mentais que os impedem de ler e escrever muito bem.
As dificuldades mais comuns da dislexia ocorrem na leitura, na escrita, ortoografia ou na matemática. Todavia, aparecem também em muitas outras áreas. Cada caso é diferente do outro, porque a dislexia é uma condição auto-gerada . Não existem dois disléxicos que a tenham desenvolvido exactamente da mesma maneira.
Para podermos entender o dom da dislexia, temos de olha o transtorno de aprendizagem conhecido como dislexia de um ângulo diferente.
A dislexia é o resultado de um talento perceptivo. Em algumas situações, ele pode tornar-se uma desvantagem. O indivíduo não percebe que isso acontece, porque o uso desse talento se tornou parte integrante do seu processo de pensamento. Começou muito cedo na vida, e agora parece tão natural como respirar.»

DAVIS, Ronald, BRAUN, Eldon, O Dom da Dislexia, col. Laços, 1ª Edição, Ed. Lua de Papel, Alfragide, Junho, 2010

sexta-feira, 8 de abril de 2011


«Neste mundo em que esquecemos
Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos
No outro em que, almas, vivemos,
São aqui esgares e assomos.

Tudo é nocturno e confuso
No que entre nós aqui há.
Projecções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso
Ao olhar que a vida dá.

Mas um ou outro, um momento,
Olhando bem, pode ver
Na sombra o seu movimento
Qual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz viver.

E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarar,
e volve ao seu corpo ido,
Imaginado e entendido,
A intuição de um olhar.

Sombra do corpo saudosa,
Mentir que sente o laço
Que liga maravilhosa
Verdade que a lança, ansiosa,
No chão do tempo e do espaço.»

Fernando Pessoa

Estética Teatral

«6 - Santo Agostinho - Confissões (séc. IV)

Santo Agostinho (354-430 d.C), arcebispo de Hipona e um dos principais Padres da Igreja, escreveu as suas Confissões com um objectivo duplo, humilhar-se e edificar-se.
No terceiro livro, que conta com a sua juventude em Catargo, descreve a sua paixão por uma mulher, depois a sua paixão pelo teatro; e o seu esforço de introspecção leva-o a uma análise psicológica do prazer experimentado pelos espectadores da tragédia.

O prazer do trágico

Tinha também, ao mesmo tempo, uma paixão violenta pelos espectáculos do Teatro, que estavam cheios de imagens das minhas misérias, e das chamas amorosas que alimentavam o fogo que me devorava. Mas qual é o motivo que faz com que os homens aí acordaram com tanto ardor, e que queriam experimentar a tristeza olhando coisas funestas e trágicas que, apesar de tudo, não queriam sofrer? Porque os espectadores querem sentir a dor, e essa dor é o seu prazer.
Qual o motivo senão uma loucura miserável, pois somos tanto mais comovidos por essas aventuras poéticas quanto menos curados daquelas paixões, apesar de apelidarem de miséria o mal que sofrem na sua pessoa, e misericórdia a compaixão que têm das infelicidades dos outros. Mas que compaixão se pode ter para com as coisas fingidas e representadas num Teatro, uma vez que aí não se excita o auditor para socorrer os fracos e os oprimidos, mas é este convidado apenas a afligir-se com o seu infortúnio? Que ele fica tanto mais satisfeito com os actores quanto mais eles o comoveram com pena e aflição; e que, se estes sujeitos trágicos, com as suas infelicidades verdadeiras ou supostas, são representados com tão pouca graça e indústria que não o afligem, sai desgostado e irritado com os actores. Que se, pelo seu contrário, for tocado com a dor, fica atento e chora, experimentando, ao mesmo tempo, o prazer e as lágrimas. Mas dado que todos os homens naturalmente desejam alegrar-se, como podem gostar dessas lágrimas e dessas dores? Não será que, ainda que o homem não sinta prazer com a miséria, no entanto ele sinta prazer a ser tocado pela misericórdia? e que, dado que não pode experimentar esse movimento da alma sem experimentar a dor, aconteça que, por uma consequência necessária, ele acarinhe e goste dessas dores?
Então, essas lágrimas procedem da fonte do amor natural que temos uns pelos outros. Mas para onde vão as águas dessa fonte, para onde correm? Elas vão fundir-se numa torrente de pez em ebulição de onde saem os ardores violentos dessas negras e sujas voluptuosidades: E é nessas acções viciosas que esse amor se converte, e se muda pelo seu próprio movimento, à medida que se afasta e se distancia da pureza celeste do verdadeiro amor. (...) Guarda-te, na minha alma, da impureza de uma compaixão louca. Porque existe outra, sábia e razoável, da qual não deixo agora de ser tocado. Mas então tomava parte na alegria desses amantes do Teatro, quando pelos seus artifícios concretizavam os seus desejos impudicos, embora tudo fosse fingido nessas representações e nesses espectáculos. E quando esses amantes eram obrigados a separar-se, eu afligia-me com eles como se estivesse tomado de compaixão; e apesar de tudo, não tinha menos prazer num que no outro.
(...) E eu, pelo contrário, sentia-me então tão miserável que gostava de ser tomado por qualquer dor, e buscava os seus sujeitos, não havendo nenhuma das acções dos actores que me agradasse tanto, e que me encantasse ainda mais, do que quando me arrancavam lágrimas dos olhos, pela representação de quaisquer infelicidades alheias e fabulosas que representavam no Teatro. E não é de surpreender, pois, sendo então uma ovelha infeliz que me tinha tresmalhado abandonado o vosso rebanho, porque não podia suportar o vosso comportamento, me encontrava  como se coberto de sarna?
Eis donde procedia este amor que tinha pelas dores, o qual, no entanto, não era tal que eu desejasse que fossem mais profundas no meu coração e na minha alma.  Porque se eu não tivesse gostado de sofrer as coisas que me agradava ver: mas estava descansado que a narrativa e a representação que se faziam diante de mim me arranhavam um pouco a pele, por assim dizer, embora em seguida, como acontece aos que se coçam com as unhas, essa satisfação passageira me causasse um inchaço cheio de inflamação de onda saía sangue corrompido e lama. Tal era então a minha vida, mas pode-se chamar-lhe vida? Meu Deus.»

(Utilizamos a tradução de Arnauld d'Andilly, um dos mestres pensadores de Port-Royal: Les Confessions de Saint Augustin, trad. de Arnauld d'Andilly, Paris, Veuve Camusat e Pierre Le Petit, 1649 (2ª.)Livro III, cap.2, pp. 73-76. Veja-se também Saint Augustin, Confessions, trad. de L. de Mondadon, Paris, Éditions Pierre Horay, 1947.)
Edição portuguese usada em apoio à tradução: Santo Agostinho, Confissões, trad. de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1982 (11ª.), pp.68-70.) (N.T)

BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine; SCHERER, Jacques, Estética Teatral: Textos de Platão a Brecht (trad. Helena Barbas), 2ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004, pp.45-47

terça-feira, 29 de março de 2011

Uma Filosofia do Design

«1. Sobre a palavra design

Em inglês, a palavra design é quer um substantivo, quer um verbo (o que diz muito sobre a natureza da língua inglesa).
Enquanto substantivo significa - entre outras coisas - «intenção». «propósito», «plano», «intento», «fim», «atentado», «conspiração», «figura», «estrutura de base», e todos estes significados (e outros) estão em estreita relação com os de «astúcia» e de «insídia». Na qualidade de verbo (to design) significa «arquitectar algo», «simular», «conceber», «esboçar», «organizar», «agir estrategicamente». O termo deriva do latim signum, que quer dizer «signo», e conserva a sua antiga raiz. Assim, do ponto de vista etimológico, design significa «desenho». Nesta altura levanta-se legitimamente a questão: como é que a palavra design ganhou o seu actual significado internacional? Não se trata de uma questão para ser abordada do ponto de vista histórico, no sentido de ir à procura de factos que testemunhem onde e quando a palavra adquiriu o seu actual significado. Trata-se antes de uma interrogação de natureza semântica, no sentido de querer induzir à reflexão sobre o motivo que fez com que esta palavra tivesse ganho tal significado no debate contemporâneo sobre a cultura.
A palavra encontra-se, em vários contextos, associada às ideias de astúcia e insídia. Um designer é um conspirador dissimulado que estende as suas armadilhas. Nos mesmos contextos aparecem outros termos muito significativos, nomeadamente mecânica e máquina. O grego méchos indica um dispositivo inventado para induzir em engano, qual armadilha, do qual o cavalo de Tróia é um exemplo. A Ulisses chamavam-lhe polymechanikós , na escola traduzido por «astuto». O próprio termo méchos deriva da raiz MAGH, que podemos reconhecer do alemão Macht («poder», «forma») e mogen («querer», «desejar»). Uma máquina é, portanto, um dispositivo projectado para induzir em engano; uma alavanca, por exemplo, engana a força da gravidade e a «mecânica» representa a estratégia para «ludibriar» os corpos pesados.
Uma outra palavra que surge no mesmo contexto é «técnica». O termo grego téchné significa «arte» e está associado a tékton ,«carpinteiro». O conceito fundamental, neste caso, é a madeira (em grego hyle), que é um material informe ao qual o artista, o técnico, confere uma forma de modo a que essa apareça em primeiro lugar. A objecção de fundo levantada por Platão em relação à arte e à técnica é que estas traem e distorcem as formas inteligíveis (as Ideias) quando as transpõem para o mundo material. Para ele, os artistas e ténicos são traidores de ideias e burlões porque induzem enganadoramente as pessoas a perceber ideias distorcidas.
O equivalente latino do grego téchné é ars, que em grego se traduz por Dreh («ideia», «expediente», «achado», «truque», na gíria do mundo do crime). O diminuitivo de ars é articulum («pequena obra de arte») e indica que algo gira, incide, em torno de outra coisa qualquer (por exemplo, pulso). Portantp, ars significa «agilidade», «destreza», e artifex, o artista, designa, em primeiro lugar, um burlão. O verdadeiro artista é o prestidigitador, tal como o testemunham as palavras «artifício», «artificial», e inclusive «artilharia». O termo Kunstler sugere que o artista é obviamente uma pessoas «capaz de fazer alguma coisa», na medida em que o termo alemão para arte, Kunst, deriva do verbo konnen, «poder». Porém, mesmo neste caso, o adjectivo gekunstelt, que significa «artificial», «artefacto», «simulado», tem a mesma raiz.
Estas considerações constituem só por si uma explicação exaustiva do lugar que a palavra design ocupa no discurso contemporâneo. Os termos design, macchina, tecnica, ars e arte estão estreitamente ligados entre si, nenhum deles é pensável sem os outros e todos têm a sua origem na mesma vidão existencial do mundo. Todavia,esta correspondência interna foi negada durante séculos (pelo menos desde o Renascimento). A cultura burguesa moderna fez uma nítida separação entre o mundo das artes e o mundo da técnica e das máquinas, pelo que a cultura foi cindida em dois ramos que se excluem mutuamente: o ramo científico, quantificável e «duro», e o artístico, qualificativo e «flexível». Esta divisão perniciosa começou a tornar-se insustentável por volta do fim do século XIX. A palavra design inseriu-se nessa brecha e fez de ponte entre os dois ramos, na medida em que o termo exprime uma conexão interna entre arte e técnica. Por isso, na época contemporânea, design indica, grosso modo, o lugar em que a arte e técnica (juntamente com as suas respectivas modalidades científicas e críticas) coincidem de comum acordo e abrem caminho a uma nova forma de cultura.
Por muito que esta possa ser uma boa explicação, não é porém suficiente. No fundo, o que une os termos supracitados consiste no facto de todos se referirem (entre outras coisas) a conceitos como embuste e cilada. A nova forma de cultura a que o design deveria desbravar caminho é uma cultura consciente do facto de ser falaz. Por isso a questão que se coloca é: o quê e quem enganamos quando tratamos de cultura (de arte e de técnica, de design, enfim)? Para dar um exemplo: uma alavanca é uma máquina simples e o seu design inspira-se no braço humano pois, na verdade, é um braço artificial. A técnica em que se baseia é provavelmente tão ou mais antiga que a espécie humana. E esta máquina, este design, esta arte, esta técnica pretendem desafiar a força da gravidade, iludir as leis da natureza e, exactamente graças ao aproveitamento de uma lei da natureza, emancipar-se de forma enganadora da nossa limitada condição humana. Por intermédio da alavanca - apesar do nosso peso corpóreo - deveríamos poder levantar-nos até tocar as estrelas se fosse preciso e, se nos dessem um ponto de apoio, ser capazes de desviar  o mundo inteiro dos eixos. Portanto, a intenção (design), que está na base de toda a cultura, consiste em ludibriar a natureza através da técnica, substituir o que é natural pelo que é artificial e construir máquinas capazes de fazer surgir um deus que nós próprios somos. Em suma: a intenção (design) que está na base de toda a cultura é a de transformar dissimuladamente simples mamíferos condicionados pela natureza em artistas livres.
Uma explicação magnífica, não é? O termo design conquistou o seu actual lugar na linguagem corrente quando começamos a aperceber-nos de que a condição humana consite num plano (design) dirigido contra a natureza. Infelizmente nem mesmo com esta explicação nos podemos contentar. Se, de facto, o design é cada vez mais o centro das atenções e o conceito de design substitui o de Ideia, então começa a fugir-nos o chão dos pés. Por exemplo, as canetas feitas de plástico estão a tornar-se cada vez mais baratas e tende-se a distribuí-las gratuitamente. O material (hyle = madeira) de que são feitas não tem praticamente valor algum e o trabalho (que, segundo Marx, é a fonte de todos os valores) é executado graças a uma sofisticada tecnologia de máquinas completamente automáticas. O único elemento que confere valor a uma caneta de plástico é o seu design, uma vez que é a ele que se deve o facto de escrever. O design representa o ponto onde convergem grandes ideias que, derivando da arte, da ciência e da economia, se enriqueceram e sobrepuseram de forma criativa umas às outras. Todavia, trata-se de algo a que não prestamos nenhuma atenção, tanto é que essas canetas tendem a ser distribuídas gratuitamente, como gadget publicitário, por exemplo. As grandes ideias que lhes deram origem são tratadas com o mesmo desprezo pelo material e pelo trabalho necessário à sua execução.
Como se explica esta desvalorização de todos os valores? A palavra design torna-nos conscientes do facto de toda a cultura ser uma fraude, de nós sermos burlões burlados, e de qualquer interesse pela cultura equivaler a um auto-engano. É verdade que, uma vez derrubada a barreira entre a arte e a tecnologia, se abriria uma nova perspectiva que nos permitiria criar designs cada vez mais perfeitos, libertar-nos cada vez mais da nossa condição e viver de forma mais artística (mais bela). Mas o preço a pagar por isso é a perda da verdade e da autenticidade. Com efeito, a alavanca está destinada a desconjuntar tudo o que é verdadeiro e autêntico e a substituí-lo mecanicamente por atefactos de design perfeito. E, assim, o valor de todos esses artefactos passa a ser igual ao das canetas de plástico, aproximando-os dos artigos descartáveis. Isso vê-se nitidamente, em última instância, perante a morte. Porque, não obstante todas as subtilezas técnicas e artísticas (apesar da arquitectura hospitaleira e do design do leito da morte), morremos exactamente como os outros mamíferos. O termo design conseguiu conquistar um lugar-chave na linguagem quotidiana porque começamos (talvez com legitimidade) a deixar de acreditar que a arte e atécnica são fontes de valor e a darmo-nos conta de intenção (design) que as sustenta.
Trata-se de uma explicação que desfaz qualquer ilusão, mas que não é necessariamente persuasiva. Chegou a altura de fazer uma confissão. O presente ensaio é sustentado por intenção (design) precisa: desvelar os insidiosos e dissimulados aspectos da palavra design que geralmente passam despercebidos. Por exemplo, se a finalidade tivesse sido diferente, poderia ter insistido no facto de o termo design estar ligado a Zeichen, «sinal», a Anzeichen, «marca distintiva». Nesse caso talvez tivesse chegado a uma explicação diferente, mas igualmente plausível, do papel actualmente desempenhado por esse termo. A resposta é esta: tudo depende da intenção (design).»

FLUSSER, Vilém, Uma Filosofia do Design: A Forma das coisas (trad. Sandra Escobar), Relógio D'Água Editores, Lisboa, Março de 2010, pp.9-14

domingo, 27 de março de 2011

Miró e seu Tempo Vivido...

Joan Miró: «O Carnaval de Alerquim (1924-5)»
«A actividade revolucionária que fervia entre este grupo de poetas e aristas novos que sofreram as agruras e desilusões da Primeira Guerra Mundial coincidia com a convicção de Miró de haver necessidade uregente na descoberta de outros métodos e outro género de vida. Os dadaístas , com quem estivera em contacto em Barcelona como em Paris, tinham-se insurgido contra o convencionalismo da arte, pertencente a um sitema social que confirmava a sua insuficiência, mas o ardor destruitivo tornou-se afinal tedioso para aqueles que desejavam penetrar mais profundamente na natureza basilar da inspiração e da arte. O resultado foi o surrealismo.


Entre amigos recentes, os que Miré achou mais afins consigo foram Michel Leiris, poeta cultoo e introspectivo e antropólogo que amava e entendia os ritos primitivos e as formas exóticas da arte; Robert Desnos , poeta e explorador apaixonado dos labirintos perigosos da alucinação e da histeria; e o desconcertante distinto actor Antonin Artaud, que declamava o seu ódio à religião estabelecida em siscursos exaltados e exigia decisiso golpe para a libertação do espírito. "Abandona as cavernas da existência. Vem, o espírito vive fora do espírito. É tempo para deixar a pátria. Rende-te ao pensamento universal. A maravilha está na raiz do espírito."


Antes desta explosão, havia sido formulada mais claramente outra atitude, essa por André Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo publicado em 1924. Desprezando argumentos violentos, os surrealistas chegaram à conclusão de que a arte só é válida quando tem um equivalente na realidade. Declararm que, falhando todas as tentativas de uma análise lógica da realidade, seria através do subconsciente, como Freud já dissera, que qualquer solução para um conhecimento mais profundo da consciência se tornaria possível.
A turbelência provocada pelas actividades dos surrealistas durante estes primeiros tempos representava para os estranhos ao caso a sua característica mais saliente. Mas além da determinação de reivindicarem a importância capital da arte na sociedade humama era a insistência em criar a fusão entre as imagens poéticas e as visuais o que Miró neles mais apreciava, assim  como a sua crença em que será válido qualquer esforço alargar a capacidade da nossa percepção. Com isto em mente, tornava-se necessário explorar todos os meios os domínios insondáveis do subconsciente. Sonhos, alucinações, até a histeria e a loucura constituíam sendas indicadas por onde seguir e passar sem impedimento para lá das fronteiras conhecidas.»


 PENROSE, Roland, Miró (trad. Cabral Nascimento), col. Grandes Artistas, Editorial Verbo, 15 Agosto,Cacém, 1972,pp.32-34

 Bem haja à Feira da Ladra e ao encontro de livros que ela nos proporciona. A cultura a um preço humanizado e o caminhar entre labirintos de tempo(s) vivido(s). "Em cada esquina um amigo " que deixou partes de si no mundo dos mundos