sexta-feira, 8 de abril de 2011


«Neste mundo em que esquecemos
Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos
No outro em que, almas, vivemos,
São aqui esgares e assomos.

Tudo é nocturno e confuso
No que entre nós aqui há.
Projecções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso
Ao olhar que a vida dá.

Mas um ou outro, um momento,
Olhando bem, pode ver
Na sombra o seu movimento
Qual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz viver.

E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarar,
e volve ao seu corpo ido,
Imaginado e entendido,
A intuição de um olhar.

Sombra do corpo saudosa,
Mentir que sente o laço
Que liga maravilhosa
Verdade que a lança, ansiosa,
No chão do tempo e do espaço.»

Fernando Pessoa

Estética Teatral

«6 - Santo Agostinho - Confissões (séc. IV)

Santo Agostinho (354-430 d.C), arcebispo de Hipona e um dos principais Padres da Igreja, escreveu as suas Confissões com um objectivo duplo, humilhar-se e edificar-se.
No terceiro livro, que conta com a sua juventude em Catargo, descreve a sua paixão por uma mulher, depois a sua paixão pelo teatro; e o seu esforço de introspecção leva-o a uma análise psicológica do prazer experimentado pelos espectadores da tragédia.

O prazer do trágico

Tinha também, ao mesmo tempo, uma paixão violenta pelos espectáculos do Teatro, que estavam cheios de imagens das minhas misérias, e das chamas amorosas que alimentavam o fogo que me devorava. Mas qual é o motivo que faz com que os homens aí acordaram com tanto ardor, e que queriam experimentar a tristeza olhando coisas funestas e trágicas que, apesar de tudo, não queriam sofrer? Porque os espectadores querem sentir a dor, e essa dor é o seu prazer.
Qual o motivo senão uma loucura miserável, pois somos tanto mais comovidos por essas aventuras poéticas quanto menos curados daquelas paixões, apesar de apelidarem de miséria o mal que sofrem na sua pessoa, e misericórdia a compaixão que têm das infelicidades dos outros. Mas que compaixão se pode ter para com as coisas fingidas e representadas num Teatro, uma vez que aí não se excita o auditor para socorrer os fracos e os oprimidos, mas é este convidado apenas a afligir-se com o seu infortúnio? Que ele fica tanto mais satisfeito com os actores quanto mais eles o comoveram com pena e aflição; e que, se estes sujeitos trágicos, com as suas infelicidades verdadeiras ou supostas, são representados com tão pouca graça e indústria que não o afligem, sai desgostado e irritado com os actores. Que se, pelo seu contrário, for tocado com a dor, fica atento e chora, experimentando, ao mesmo tempo, o prazer e as lágrimas. Mas dado que todos os homens naturalmente desejam alegrar-se, como podem gostar dessas lágrimas e dessas dores? Não será que, ainda que o homem não sinta prazer com a miséria, no entanto ele sinta prazer a ser tocado pela misericórdia? e que, dado que não pode experimentar esse movimento da alma sem experimentar a dor, aconteça que, por uma consequência necessária, ele acarinhe e goste dessas dores?
Então, essas lágrimas procedem da fonte do amor natural que temos uns pelos outros. Mas para onde vão as águas dessa fonte, para onde correm? Elas vão fundir-se numa torrente de pez em ebulição de onde saem os ardores violentos dessas negras e sujas voluptuosidades: E é nessas acções viciosas que esse amor se converte, e se muda pelo seu próprio movimento, à medida que se afasta e se distancia da pureza celeste do verdadeiro amor. (...) Guarda-te, na minha alma, da impureza de uma compaixão louca. Porque existe outra, sábia e razoável, da qual não deixo agora de ser tocado. Mas então tomava parte na alegria desses amantes do Teatro, quando pelos seus artifícios concretizavam os seus desejos impudicos, embora tudo fosse fingido nessas representações e nesses espectáculos. E quando esses amantes eram obrigados a separar-se, eu afligia-me com eles como se estivesse tomado de compaixão; e apesar de tudo, não tinha menos prazer num que no outro.
(...) E eu, pelo contrário, sentia-me então tão miserável que gostava de ser tomado por qualquer dor, e buscava os seus sujeitos, não havendo nenhuma das acções dos actores que me agradasse tanto, e que me encantasse ainda mais, do que quando me arrancavam lágrimas dos olhos, pela representação de quaisquer infelicidades alheias e fabulosas que representavam no Teatro. E não é de surpreender, pois, sendo então uma ovelha infeliz que me tinha tresmalhado abandonado o vosso rebanho, porque não podia suportar o vosso comportamento, me encontrava  como se coberto de sarna?
Eis donde procedia este amor que tinha pelas dores, o qual, no entanto, não era tal que eu desejasse que fossem mais profundas no meu coração e na minha alma.  Porque se eu não tivesse gostado de sofrer as coisas que me agradava ver: mas estava descansado que a narrativa e a representação que se faziam diante de mim me arranhavam um pouco a pele, por assim dizer, embora em seguida, como acontece aos que se coçam com as unhas, essa satisfação passageira me causasse um inchaço cheio de inflamação de onda saía sangue corrompido e lama. Tal era então a minha vida, mas pode-se chamar-lhe vida? Meu Deus.»

(Utilizamos a tradução de Arnauld d'Andilly, um dos mestres pensadores de Port-Royal: Les Confessions de Saint Augustin, trad. de Arnauld d'Andilly, Paris, Veuve Camusat e Pierre Le Petit, 1649 (2ª.)Livro III, cap.2, pp. 73-76. Veja-se também Saint Augustin, Confessions, trad. de L. de Mondadon, Paris, Éditions Pierre Horay, 1947.)
Edição portuguese usada em apoio à tradução: Santo Agostinho, Confissões, trad. de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1982 (11ª.), pp.68-70.) (N.T)

BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine; SCHERER, Jacques, Estética Teatral: Textos de Platão a Brecht (trad. Helena Barbas), 2ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004, pp.45-47