domingo, 27 de março de 2011

"De que é que se tem medo?"

«O medo é uma estratégia para nada inscrever. Constitui-se, antes de mais, como medo de inscrever, quer dizer, de existir, de afrontar as forças do mundo desencadeando as forças da vida. Medo de agir, de tomar decisões diferentes da norma vigente, medo de amar, de criar, de viver. Medo de arriscar. A prudência é a lei do bom senso português.
O medo que reinava no antigo regime passou a outro registo, sem desertar dos corpos. Menos disseminado, circula agora horizontalmente, por assim dizer. Enquanto na velha atmosfera de medo, este, por toda a parte infiltrado, circulava de cima para baixo, na vertical, manifestando-se universalmente na relação hierárquica de obediência, hoje, como não podia deixar de ser, com a instauração da democracia, o medo joga-se no enfrentamento possível da competitividade. No Estado autoritário segue a via piramidal, do cume para a base; no Estado democrático os seus trajectos inflectem-se para o plano horizontal.
Não desapareceu na relação de submissão hierárquica, subsiste, claro, mas com muito menos força. Outro, diferente, surgiu e estendeu-se por toda a superfíce social. O medo do rival, do colega, dos outros candidatos ao memo lugar, à carreira, ao emprego, quer dizer, o medo de todos os outros. Medo extraordinariamente agravado pela subavaliação que o indivíduo faz de si mesmo, julgando-se sempre abaixo do nível exigido, nunca à altura do que se lhe pede.
O esmagamento a que os portugueses foram sujeitos durante o salazarismo manifesta aqui um dos seus efeitos. Ninguém se julga capaz, toda a gente se sente inferior à norma ideal de competência. O que não deixa de ser, em inúmeros casos, real, mas que contribui também para que a incompetência aumente por falta de audácia, de coragem, de capacidade para se reconhecer o que se é. Aqui o medo desdobra-se e age, imaginariamente, transformando-se em temor de ser apontado publicamente como incompetente. Esconde-se, criando um ecrã onde se dá continuidade aos velhos expedientes, próprios da sociedade autoritária, para parecer o que não é. A maioria dos esforços vão no sentido de manter essa máscara em vez de investir no desenvolvimento da inovação.
Trata-se afinal, sempre, de relações de poder , como diria Foucault. O medo é medo do poder, mas também da impotência própria diante do poder. Medo de não saber e de ser desmascarado. Medo de ter medo. Medo de parecer ter medo, de parecer fraco, incapaz, ignorante, medíocre.»
(...)

GIL, José,  Portugal Hoje: O Medo de Existir, Relógio D'Água Editores, 12ª Edição, Lisboa, Novembro, 2008, pp.69-70

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