terça-feira, 29 de março de 2011

Uma Filosofia do Design

«1. Sobre a palavra design

Em inglês, a palavra design é quer um substantivo, quer um verbo (o que diz muito sobre a natureza da língua inglesa).
Enquanto substantivo significa - entre outras coisas - «intenção». «propósito», «plano», «intento», «fim», «atentado», «conspiração», «figura», «estrutura de base», e todos estes significados (e outros) estão em estreita relação com os de «astúcia» e de «insídia». Na qualidade de verbo (to design) significa «arquitectar algo», «simular», «conceber», «esboçar», «organizar», «agir estrategicamente». O termo deriva do latim signum, que quer dizer «signo», e conserva a sua antiga raiz. Assim, do ponto de vista etimológico, design significa «desenho». Nesta altura levanta-se legitimamente a questão: como é que a palavra design ganhou o seu actual significado internacional? Não se trata de uma questão para ser abordada do ponto de vista histórico, no sentido de ir à procura de factos que testemunhem onde e quando a palavra adquiriu o seu actual significado. Trata-se antes de uma interrogação de natureza semântica, no sentido de querer induzir à reflexão sobre o motivo que fez com que esta palavra tivesse ganho tal significado no debate contemporâneo sobre a cultura.
A palavra encontra-se, em vários contextos, associada às ideias de astúcia e insídia. Um designer é um conspirador dissimulado que estende as suas armadilhas. Nos mesmos contextos aparecem outros termos muito significativos, nomeadamente mecânica e máquina. O grego méchos indica um dispositivo inventado para induzir em engano, qual armadilha, do qual o cavalo de Tróia é um exemplo. A Ulisses chamavam-lhe polymechanikós , na escola traduzido por «astuto». O próprio termo méchos deriva da raiz MAGH, que podemos reconhecer do alemão Macht («poder», «forma») e mogen («querer», «desejar»). Uma máquina é, portanto, um dispositivo projectado para induzir em engano; uma alavanca, por exemplo, engana a força da gravidade e a «mecânica» representa a estratégia para «ludibriar» os corpos pesados.
Uma outra palavra que surge no mesmo contexto é «técnica». O termo grego téchné significa «arte» e está associado a tékton ,«carpinteiro». O conceito fundamental, neste caso, é a madeira (em grego hyle), que é um material informe ao qual o artista, o técnico, confere uma forma de modo a que essa apareça em primeiro lugar. A objecção de fundo levantada por Platão em relação à arte e à técnica é que estas traem e distorcem as formas inteligíveis (as Ideias) quando as transpõem para o mundo material. Para ele, os artistas e ténicos são traidores de ideias e burlões porque induzem enganadoramente as pessoas a perceber ideias distorcidas.
O equivalente latino do grego téchné é ars, que em grego se traduz por Dreh («ideia», «expediente», «achado», «truque», na gíria do mundo do crime). O diminuitivo de ars é articulum («pequena obra de arte») e indica que algo gira, incide, em torno de outra coisa qualquer (por exemplo, pulso). Portantp, ars significa «agilidade», «destreza», e artifex, o artista, designa, em primeiro lugar, um burlão. O verdadeiro artista é o prestidigitador, tal como o testemunham as palavras «artifício», «artificial», e inclusive «artilharia». O termo Kunstler sugere que o artista é obviamente uma pessoas «capaz de fazer alguma coisa», na medida em que o termo alemão para arte, Kunst, deriva do verbo konnen, «poder». Porém, mesmo neste caso, o adjectivo gekunstelt, que significa «artificial», «artefacto», «simulado», tem a mesma raiz.
Estas considerações constituem só por si uma explicação exaustiva do lugar que a palavra design ocupa no discurso contemporâneo. Os termos design, macchina, tecnica, ars e arte estão estreitamente ligados entre si, nenhum deles é pensável sem os outros e todos têm a sua origem na mesma vidão existencial do mundo. Todavia,esta correspondência interna foi negada durante séculos (pelo menos desde o Renascimento). A cultura burguesa moderna fez uma nítida separação entre o mundo das artes e o mundo da técnica e das máquinas, pelo que a cultura foi cindida em dois ramos que se excluem mutuamente: o ramo científico, quantificável e «duro», e o artístico, qualificativo e «flexível». Esta divisão perniciosa começou a tornar-se insustentável por volta do fim do século XIX. A palavra design inseriu-se nessa brecha e fez de ponte entre os dois ramos, na medida em que o termo exprime uma conexão interna entre arte e técnica. Por isso, na época contemporânea, design indica, grosso modo, o lugar em que a arte e técnica (juntamente com as suas respectivas modalidades científicas e críticas) coincidem de comum acordo e abrem caminho a uma nova forma de cultura.
Por muito que esta possa ser uma boa explicação, não é porém suficiente. No fundo, o que une os termos supracitados consiste no facto de todos se referirem (entre outras coisas) a conceitos como embuste e cilada. A nova forma de cultura a que o design deveria desbravar caminho é uma cultura consciente do facto de ser falaz. Por isso a questão que se coloca é: o quê e quem enganamos quando tratamos de cultura (de arte e de técnica, de design, enfim)? Para dar um exemplo: uma alavanca é uma máquina simples e o seu design inspira-se no braço humano pois, na verdade, é um braço artificial. A técnica em que se baseia é provavelmente tão ou mais antiga que a espécie humana. E esta máquina, este design, esta arte, esta técnica pretendem desafiar a força da gravidade, iludir as leis da natureza e, exactamente graças ao aproveitamento de uma lei da natureza, emancipar-se de forma enganadora da nossa limitada condição humana. Por intermédio da alavanca - apesar do nosso peso corpóreo - deveríamos poder levantar-nos até tocar as estrelas se fosse preciso e, se nos dessem um ponto de apoio, ser capazes de desviar  o mundo inteiro dos eixos. Portanto, a intenção (design), que está na base de toda a cultura, consiste em ludibriar a natureza através da técnica, substituir o que é natural pelo que é artificial e construir máquinas capazes de fazer surgir um deus que nós próprios somos. Em suma: a intenção (design) que está na base de toda a cultura é a de transformar dissimuladamente simples mamíferos condicionados pela natureza em artistas livres.
Uma explicação magnífica, não é? O termo design conquistou o seu actual lugar na linguagem corrente quando começamos a aperceber-nos de que a condição humana consite num plano (design) dirigido contra a natureza. Infelizmente nem mesmo com esta explicação nos podemos contentar. Se, de facto, o design é cada vez mais o centro das atenções e o conceito de design substitui o de Ideia, então começa a fugir-nos o chão dos pés. Por exemplo, as canetas feitas de plástico estão a tornar-se cada vez mais baratas e tende-se a distribuí-las gratuitamente. O material (hyle = madeira) de que são feitas não tem praticamente valor algum e o trabalho (que, segundo Marx, é a fonte de todos os valores) é executado graças a uma sofisticada tecnologia de máquinas completamente automáticas. O único elemento que confere valor a uma caneta de plástico é o seu design, uma vez que é a ele que se deve o facto de escrever. O design representa o ponto onde convergem grandes ideias que, derivando da arte, da ciência e da economia, se enriqueceram e sobrepuseram de forma criativa umas às outras. Todavia, trata-se de algo a que não prestamos nenhuma atenção, tanto é que essas canetas tendem a ser distribuídas gratuitamente, como gadget publicitário, por exemplo. As grandes ideias que lhes deram origem são tratadas com o mesmo desprezo pelo material e pelo trabalho necessário à sua execução.
Como se explica esta desvalorização de todos os valores? A palavra design torna-nos conscientes do facto de toda a cultura ser uma fraude, de nós sermos burlões burlados, e de qualquer interesse pela cultura equivaler a um auto-engano. É verdade que, uma vez derrubada a barreira entre a arte e a tecnologia, se abriria uma nova perspectiva que nos permitiria criar designs cada vez mais perfeitos, libertar-nos cada vez mais da nossa condição e viver de forma mais artística (mais bela). Mas o preço a pagar por isso é a perda da verdade e da autenticidade. Com efeito, a alavanca está destinada a desconjuntar tudo o que é verdadeiro e autêntico e a substituí-lo mecanicamente por atefactos de design perfeito. E, assim, o valor de todos esses artefactos passa a ser igual ao das canetas de plástico, aproximando-os dos artigos descartáveis. Isso vê-se nitidamente, em última instância, perante a morte. Porque, não obstante todas as subtilezas técnicas e artísticas (apesar da arquitectura hospitaleira e do design do leito da morte), morremos exactamente como os outros mamíferos. O termo design conseguiu conquistar um lugar-chave na linguagem quotidiana porque começamos (talvez com legitimidade) a deixar de acreditar que a arte e atécnica são fontes de valor e a darmo-nos conta de intenção (design) que as sustenta.
Trata-se de uma explicação que desfaz qualquer ilusão, mas que não é necessariamente persuasiva. Chegou a altura de fazer uma confissão. O presente ensaio é sustentado por intenção (design) precisa: desvelar os insidiosos e dissimulados aspectos da palavra design que geralmente passam despercebidos. Por exemplo, se a finalidade tivesse sido diferente, poderia ter insistido no facto de o termo design estar ligado a Zeichen, «sinal», a Anzeichen, «marca distintiva». Nesse caso talvez tivesse chegado a uma explicação diferente, mas igualmente plausível, do papel actualmente desempenhado por esse termo. A resposta é esta: tudo depende da intenção (design).»

FLUSSER, Vilém, Uma Filosofia do Design: A Forma das coisas (trad. Sandra Escobar), Relógio D'Água Editores, Lisboa, Março de 2010, pp.9-14

Sem comentários:

Enviar um comentário